Quando fomos sorteados para passar um dos meses da rotação de
Medicina de Família e Comunidade em Nova Petrópolis na UBS Pinhal Alto, nos
sentimos tão sortudos, mas mal sabíamos o tamanho do privilégio que seria essa
experiência e a extrema importância dela para nosso futuro como profissionais.
Pinhal Alto é um charmoso bairro de cultura alemã, com uma comunidade que nos
recebeu de braços abertos. A equipe da UBS é maravilhosa e é exemplo de
trabalho multidisciplinar em equipe – pudemos ver como isso é importante para o
bom funcionamento de um posto de saúde.
O
estágio rural nos proporcionou uma imersão no verdadeiro cerne da medicina: o
cuidado com o ser humano como um todo – não apenas ouvir e entender as queixas
do paciente, mas também entender sua cultura e o meio em que ele vive: sua
família e amigos, seu trabalho. É aí que está a magia e o privilégio do Médico
de Família: pertencer à uma comunidade e ser querido e respeitado por ela. Vivenciamos
todos os pilares da Atenção Primária à Saúde, como a longitudinalidade e
integralidade, pudemos entender como nunca antes que medicina, antes de ser
“baseada em evidências” deve ser humana, é uma arte de conhecer e se conectar
com o ser humano. O professor Dr. Leonardo Targa é sem dúvidas um exemplo de
profissional, e fez o que muitos professores não conseguem: corrigiu os erros
ao mesmo tempo em que nos inspirava confiança e conferia autonomia nas consultas.
Foi o estágio em que nos sentimos mais “médicos”, uma experiência ímpar!
Conto: A casinha azul.
Ao final de uma estrada de chão cada vez mais estreita, cercada de
um lado por capim crescido e do outro por uma taipa de pedras improvisada,
desponta uma casinha azul. Rodeada de muitas árvores e flores diversas que
perfumam o ar com um aroma docemente agradável, que o doutor rapidamente
reconhece: “flor de laranjeira!”. Uma senhorinha corcunda nos recebe, fala
apenas alemão, rápido, tem urgência de ser ouvida. Dr Leonardo entende a maior
parte e a agente de saúde também ajuda a traduzir.
A
casinha azul é simples, nas paredes há quadros e símbolos religiosos, de eletrodomésticos
apenas uma geladeira. Ao entrar no quarto, deitado na cama está um senhorzinho
extremamente magro, debilitado e sem conseguir se mover muito bem. Mas seus
olhos miram no doutor, e então ele chora emocionado, agradece em alemão a
visita tão esperada. Ele havia sofrido um AVC há algumas semanas e desde então
perdeu boa parte de seus movimentos - a mão trêmula faz menção de alcançar a do
médico, que se inclina para apanhá-la. A sua esposa também muito idosa faz de
tudo para ajudá-lo, preocupa-se, pois ele não consegue se sentar na cadeira de
rodas, está sempre caindo para o lado - a enfermeira e a agente de saúde
prontamente explicam como ela pode amarrar o tronco do esposo na cadeira pra
ele não cair mais.
Examinado
o paciente, revisamos juntos seus exames, suas medicações. “Voltou do hospital
após o AVC, sem o AAS!” - decepção nos olhos do professor Leonardo. Ajustamos e
prescrevemos todas as medicações necessárias na mesa da cozinha da pequena
casa. A senhora tem um semblante sereno. Agora as coisas iriam se ajeitar. Em
alemão o doutor dá as orientações à senhorinha e explica para não hesitar em
chamar se precisar de nova visita. Despedimo-nos do casal que agora enfrenta
uma nova realidade. Torcendo pela recuperação do senhorzinho. Eles vivem
isolados, não há telefone, não há televisão. O alento que essa visita deve ter significado
para esses dois deve estar além da nossa compreensão. Já no carro, penso em voz
alta “coitado!”. Prontamente o professor complementa: “um senhor desses não
sabe o que é não trabalhar, percebe o mundo e se expressa através do tato, do
trabalho braçal e não da mente e da comunicação. Não sabe ver um filme, ler um
livro. Vai ser muito difícil pra ele essa situação”.
É por isso que essas visitas são tão importantes, para que o cuidado
chegue até aqueles que mais precisam e que não tem condições de buscar ajuda
sozinhos. Para os isolados, olhados apenas por Deus, a mão do médico que
adentra a sua casa é esperança, é alento e é amor. E pensar que essa é apenas
uma pequena parte do que é ser Médico de Família.
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