terça-feira, 23 de outubro de 2018

Relato de estágio Ddos Juliana Zaro e Marcelo Vendrusculo



Quando fomos sorteados para passar um dos meses da rotação de Medicina de Família e Comunidade em Nova Petrópolis na UBS Pinhal Alto, nos sentimos tão sortudos, mas mal sabíamos o tamanho do privilégio que seria essa experiência e a extrema importância dela para nosso futuro como profissionais. Pinhal Alto é um charmoso bairro de cultura alemã, com uma comunidade que nos recebeu de braços abertos. A equipe da UBS é maravilhosa e é exemplo de trabalho multidisciplinar em equipe – pudemos ver como isso é importante para o bom funcionamento de um posto de saúde.                                                                                                                  
O estágio rural nos proporcionou uma imersão no verdadeiro cerne da medicina: o cuidado com o ser humano como um todo – não apenas ouvir e entender as queixas do paciente, mas também entender sua cultura e o meio em que ele vive: sua família e amigos, seu trabalho. É aí que está a magia e o privilégio do Médico de Família: pertencer à uma comunidade e ser querido e respeitado por ela. Vivenciamos todos os pilares da Atenção Primária à Saúde, como a longitudinalidade e integralidade, pudemos entender como nunca antes que medicina, antes de ser “baseada em evidências” deve ser humana, é uma arte de conhecer e se conectar com o ser humano. O professor Dr. Leonardo Targa é sem dúvidas um exemplo de profissional, e fez o que muitos professores não conseguem: corrigiu os erros ao mesmo tempo em que nos inspirava confiança e conferia autonomia nas consultas. Foi o estágio em que nos sentimos mais “médicos”, uma experiência ímpar!

         
               

                                                          



Conto: A casinha azul.

Ao final de uma estrada de chão cada vez mais estreita, cercada de um lado por capim crescido e do outro por uma taipa de pedras improvisada, desponta uma casinha azul. Rodeada de muitas árvores e flores diversas que perfumam o ar com um aroma docemente agradável, que o doutor rapidamente reconhece: “flor de laranjeira!”. Uma senhorinha corcunda nos recebe, fala apenas alemão, rápido, tem urgência de ser ouvida. Dr Leonardo entende a maior parte e a agente de saúde também ajuda a traduzir.                                                                                         
 A casinha azul é simples, nas paredes há quadros e símbolos religiosos, de eletrodomésticos apenas uma geladeira. Ao entrar no quarto, deitado na cama está um senhorzinho extremamente magro, debilitado e sem conseguir se mover muito bem. Mas seus olhos miram no doutor, e então ele chora emocionado, agradece em alemão a visita tão esperada. Ele havia sofrido um AVC há algumas semanas e desde então perdeu boa parte de seus movimentos - a mão trêmula faz menção de alcançar a do médico, que se inclina para apanhá-la. A sua esposa também muito idosa faz de tudo para ajudá-lo, preocupa-se, pois ele não consegue se sentar na cadeira de rodas, está sempre caindo para o lado - a enfermeira e a agente de saúde prontamente explicam como ela pode amarrar o tronco do esposo na cadeira pra ele não cair mais.      
Examinado o paciente, revisamos juntos seus exames, suas medicações. “Voltou do hospital após o AVC, sem o AAS!” - decepção nos olhos do professor Leonardo. Ajustamos e prescrevemos todas as medicações necessárias na mesa da cozinha da pequena casa. A senhora tem um semblante sereno. Agora as coisas iriam se ajeitar. Em alemão o doutor dá as orientações à senhorinha e explica para não hesitar em chamar se precisar de nova visita. Despedimo-nos do casal que agora enfrenta uma nova realidade. Torcendo pela recuperação do senhorzinho. Eles vivem isolados, não há telefone, não há televisão. O alento que essa visita deve ter significado para esses dois deve estar além da nossa compreensão. Já no carro, penso em voz alta “coitado!”. Prontamente o professor complementa: “um senhor desses não sabe o que é não trabalhar, percebe o mundo e se expressa através do tato, do trabalho braçal e não da mente e da comunicação. Não sabe ver um filme, ler um livro. Vai ser muito difícil pra ele essa situação”.

É por isso que essas visitas são tão importantes, para que o cuidado chegue até aqueles que mais precisam e que não tem condições de buscar ajuda sozinhos. Para os isolados, olhados apenas por Deus, a mão do médico que adentra a sua casa é esperança, é alento e é amor. E pensar que essa é apenas uma pequena parte do que é ser Médico de Família.

                                                                                            Doutoranda Juliana Zaro (Set/2018)
 

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